Google Analytics Alternative

CUIDAR DE SI NÃO É UMA TAREFA SIMPLES.

domingo, 26 de agosto de 2018
Alcebíades é um dos mais valorosos guerreiros e atletas gregos do século 5 a.c. Bonito e bem educado, rico e reconhecido, ele procura seu antigo mestre de juventude, Sócrates. Agora, ele se sente realizado e sua ambição é entrar para a política. Seu destino é mandar e, para isso, ele precisa de um bom conselheiro. Mas quando ele pergunta para o velho sábio, afinal, como deve agir aquele que ambiciona o poder, recebe como resposta algo inesperado: cuida da tua alma. 

Cuidar de si tornou-se, assim, assunto filosófico antes que alma fosse tratada como tema religioso ou teológico. Cuidar de si não é uma tarefa simples, e o maior erro é imaginar que cada qual pode ser ensinado para isso. Cuidar de si não é seguir cegamente um conjunto de regras, nem mesmo praticar exercícios ou fazer dieta. Isso tudo pode ser feito, mas o problema central do cuidado de si é: que tipo de relação você mantém consigo? A mesma que um general tem para com suas tropas? A que um juiz tem com o réu? Talvez a que o pai tem com o filho? Nada disso, porque, em todos os casos anteriores, trata-se de exercer uma espécie de poder sobre si. Aquele que tem uma relação de submissão ou dominação para consigo tende a reproduzir essa mesma relação com o outro, logo, é a pessoa menos indicada para se tornar um político, um chefe ou um líder de qualquer tipo.

O que os gregos chamavam de cuidado de si não é o mesmo que o conhece-te a si mesmo. Não é uma prática de introspecção nem um teste autodiagnóstico, mas envolve uma prática dialogal com o outro e consigo. Cuidar de si começa pela possibilidade de escutar-se. Daí que as práticas de cuidado de si envolvessem exercícios como: análise das próprias ideias, convicções e valores, ver as coisas de perto e vê-las de longe (observar estrelas, por exemplo), meditar sobre a morte, meditar sobre o futuro, examinar o passado, interpretar seus sonhos e, antes de tudo, refletir sobre como nos colocamos nas relações de poder e nosso persistente desejo de servidão. O contrário do cuidar de si é a nossa demanda de amparo, de ser cuidado e, logo, de ser guiado pelo outro. Por isso, o cuidado de si é uma prática ética para dizer bem o que se quer, para descobrir caminhos e ponderar sobre nossas escolhas e desejos. A psicanálise, bem como uma parte das psicoterapias, descende das práticas helenísticas de cuidado de si. Observemos que tais práticas não são nem políticas nem educativas, mas interferem e condicionam nossa relação com o saber e com o poder. São como aquelas pessoas que mudam de religião a cada verão, como que a esperar que uma hora encontrarão o bom mestre.


Quando se fala em temas éticos transversais nas escolas, quando se valoriza a empatia e a formação cultural, o cultivo dos talentos e das potencialidades, muitas vezes no contexto do “capital humano”, do desenvolvimento humano e da empregabilidade, nem sempre levamos em conta que tais práticas nunca poderiam ser dissociadas da estrutura ética na qual elas acontecem. E o maior paradoxo é que, quase sempre, elas se transformam em disciplinas e regras de ação ou de controle consigo mesmo. Apesar de bem intencionadas, quando a estrutura ética do cuidado é substituída pelo poder sobre si, geralmente encontramos resultados contrários e estranhos. 

É assim que as cirurgias estéticas se tornam um fim em si mesmo, que nunca alcançam o resultado esperado, porque a relação sobre si é de poder, e não de cuidado. É assim que o ex-fumante passa a odiar cheiro de fumaça. É por isso, também, que tantas vezes os regimes alimentares evoluem para anorexias e bulimias. Quando dá certo, dá errado. Isso acontece porque a relação como o poder não mudou, e a relação consigo permanece a mesma.

O mais difícil, portanto, é criar uma espécie de conversão para o cuidado, sem confundir nem reduzir o cuidado à educação e ou as fórmulas de obediência. Em tempos de eleição, seria possível e desejável observar quais candidatos recolheram a lição de Sócrates e quais deles apenas ainda falam a linguagem da ordem ou da administração de si e dos outros. 

Fonte: Gaúcha zh.

0 comentários:

Postar um comentário